quinta-feira, maio 31, 2007

Insónia Febril



Deveria estar acordado
e não durmo,
escorrem-me as horas
pesadas como sombras
pela face,
cola-se-me o tempo ao corpo.

Sinto esta madrugada corrompida.
O dia artificial como uma peste
afugenta o sono das paredes
e o tempo arrasta-se enfermo,
dependurado no que resiste à luz.
...de mim não se aparta,
não cala o sopro de quem chora,
não pára o grito sussurrado,
o desespero incontido por me conter.

Há nas minhas sombras um frio profundo que se me crava nas costas,
uma vigília de morte que não me deixa morrer.

quarta-feira, maio 30, 2007

Abismo


Forma-se o tempo aqui
na ausência de tudo.
Edificam-se torres
de formas fragmentadas
e as sinistras silhuetas,
sobre quem nem as velhas cobras
ousam sibilar.
Percorro-me aí
perdido em labirintos desprovidos de paredes
há muito desgastados pela fricção das asas.

Corpo.
Templo inútil
abandonado.
Serve-se a glória eterna
em corredores de fogo inalados
e sonhos de dragão primordial.
Na língua dormem palavras antigas
escoadas pelos olhos fixos no abismo ascendente.
O universo dilui-se docemente
na minha boca de Inferno.

Que caminho decidi tomar…
Coroam as margens as ruínas dos edifícios humanos
e no trilho, miríades de anjos,
como insectos,
cobrem o solo no ultimo dos sonhos.

Que caminho…
Basta-me brindar à vida,
com um cálice cheio de Morte.

sexta-feira, maio 25, 2007

Manhã de Maio






No despertar o corpo está morto. Desmente-se apenas pelo calor latejante do sexo e pela sensação de fome. Lá fora, embora primavera, não são os pássaros que cantam mas os céus que desabam com harmonia de encontro ao solo. O sol afastou-se deste pedaço de terra faz uma semana e Deus na tentativa de ocultar tão estranho cataclismo, cobriu os céus de cinza invernal, para salvar os Homens de tão grande monotonia trajada de pálido e insalubre azul. De volta à terra, o tabaco é cuidadosamente lavrado sobre a mortalha enquanto o cadáver agora acordado se desenrola lentamente da sua. Inspira… Parece de facto o primeiro respirar desde há muitas horas, o fumo ocupa o interior do corpo com gentileza e espanta a fome, ao expirar, os olhos ainda a deambularem entre mundos, acompanham o fumo, como se ele levasse em si diluídos os primeiros pensamentos do dia e os últimos da noite. Mais um cigarro ainda antes do corpo se erguer, de facto parece que não há veneno que chegue. E o corpo desliza sem pensar, detêm-se apenas por mais alguns momentos coberto pelo manto de água que desaba do chuveiro, ali inebriado pela amena vertigem do tabaco matinal, parece que a morna temperatura dos pensamentos se funde com o ar. Com a toalha retiram-se as ultimas gotas desta sublime droga e como que a levitar… eis o mundo exterior. Efectivamente os sentidos cegos não mentiram, os cascos do Inverno mostram-se vigorosos em pleno fim de Maio, destroços de céu cobrem as ruas e as pessoas que caminham sobre os destroços parecem elas mesmas destroços mas sem estarem cobertas de céu algum. Meto-me no carro rumo à estação dos comboios, como uma lamina corto lentamente esta massa uniformemente cinzenta enquanto contemplo todo o amargo da beleza do mundo. A fome volta a ferir-me o estômago e os céus a cariem com mais veemência, ainda no interior do carro preparo mais um cigarro para me alimentar. Caminho então para o comboio de cigarro resguardado na mão, é bom sentir o frio da chuva a beijar-me a cara e o respirar desta Primavera moribunda que maternamente mantêm o ar quente. Rodeado pela náusea colorida dos chapéus-de-chuva apago o cigarro e entro na carruagem, jogo-me de novo à morte.