sexta-feira, janeiro 11, 2008

O Ser

Lembro-me de estar numa sala imensa. O chão era uma enorme superfície de madeira salpicada de tapetes coloridos, as paredes altas, mais altas que o normal e a luz que iluminava o espaço provinha de uma ampla janela de onde brotava a parca claridade típica de um dia de Outono.

No espaço circulavam uns poucos seres gigantes, pouco me lembro deles, só que, se não eram mudos, aparentavam.

Pouco mais me lembro que isto. Tenho também, uma muito vaga ideia de que junto comigo haviam outros semelhantes a mim, mas deles nada soube. Algo em mim, uma força que embora sendo minha não me pertencia, cavou um abismo impossível de transpor.

E ali fiquei, sentado no chão, submerso numa agonia que ainda hoje consigo reviver ao pormenor. Lembro-me claramente de sentir todo o meu corpo prestes a rebentar devido ao choro convulso em que caíra, lembro duma angustia sem consolo possível, uma raiva, que me fez esquecer provavelmente as vezes em que um desses seres gigantes me tentou resgatar a uma calma que nunca seria minha.

Este foi o meu primeiro e único dia no infantário. No dia seguinte libertaram-me de novo nos campos de cereais que me pintavam o olhar, e onde, sem o saber na altura, um dia iria correr como que a cada passada quebrando as correntes que o mundo me havia prometido. Ali, onde me tornaria no Homem e no Monstro que sou.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

III

Espreito pela janela do comboio e os céus ainda estão cinzentos. Abençoados sejam.

Os fantasmas por aqui deambulam como sempre, vestidos da sua morte. A mim cobrem-me as vestes deste ódio dourado que me fez cego para o mundo. Lá fora o rio segue sempre cheio dos meus pensamentos.

À volta do meu pulso firma-se algo – a tua mão. Gritam os carris, os fantasmas, o Rio, os céus, A velha Leviatã! O choro Dela é meu! Os bandos de chapéus-de-chuva a voarem paralelamente ao comboio recolhem-se, recolhe-se o mundo, numa esfera de improvável azul, fecham-se as pálpebras, recolhem-se as lágrimas com a ponta de ouro de uma asa. A tua mão, firme em mim, a tua mão seguida do teu corpo e do fogo dos teus cabelos e seguindo a extremidade dos teus cabelos… vinte e cinco mil, vinte e cinco mil milhões de quilómetros sem te reconhecer, a distância exacta que separa a minha mão esquerda da oposta.

E o peso dessa distância carrego-o junto com o meu silêncio, é meu nesta viagem.