segunda-feira, julho 16, 2007

O velho órfão

A vida é um cálice vazio, tentamos a todo o custo enche-lo mas não compreendemos que ele se enche de nós mesmos até ao dia em que transborda - isto dizia-me o meu pai há mais de 60 anos. Dizia também, enquanto sulcava a terra para a plantar, que a luz era como as sementes e as plantas que delas provinham, mais importante para ele eram as terras de onde brotava a vida do que a vida em si. A escuridão cósmica, para si, era o corpo do Senhor, todo Ele erguido e apoiado sobre si mesmo, majestoso e contemplativo, fazendo brotar de si o seu raro fruto, a luz.

Da terra o fruto, das trevas a luz, do silencio o ruído… Dizia ele, o meu pai, que a prova da existência e gloria do Senhor era confirmada na simples constatação de que ele era o inicio e o fim de todas as coisas, o fruto vinha da terra apenas para voltar mais tarde à terra.


Agora moro exactamente na mesma casa, fico-me pelo alpendre a contemplar as estações a passarem na companhia dos gatos a quem pertenço. O cálice do meu pai já foi bebido há tempo de mais para me lembrar, recordo apenas o sonho que tive na noite em que partiu. Estava eu nu e sem idade deitado sobre um chão frio de uma sala como nenhuma outra sala, toda ela parecia não ter fim e no entanto via-lhe paredes de mármore a erguerem-se infinitamente. No meio da sala lá estava um cálice e sobre ele pingava um liquido provindo de um possível tecto. O cálice estava cheio e gota a gota acabou por transbordar. Uma mão tomou forma, e delicadamente colocou o pé do cálice entre o dedo médio e o anelar e com a palma apoiou o fundo erguendo até aos lábios que se materializaram num instante para o beber. Depois disso lembro-me de acordar rodeado pelas lágrimas do todos os que habitavam a casa, nunca mais vi o meu pai. Acabaram todos por partir e sobrei eu por acreditar que estando sozinho e afastado dos Homens se resolve o único problema da morte.


Hoje caiu mais uma estação, as cores do Verão atearam o Outono nos campos e até o meu corpo serve de poiso ao dourado do ar. A árvore dos recém-nascidos está carregada dos seus frutos e ouvem-se os seus gritos mesmo por entre o ruído do vento em todas as outras árvores. Os gatos agitam-se e juntam-se ao choro do coro, agito-me eu também e caminho até à árvore para colher um fruto. Ao retirar o recém-nascido gera-se um estranho silencio, caminho de volta ao alpendre apoiando o bebé de encontro à pele macia e rugosa do meu peito, sento-me na cadeira de baloiço a contemplar o perfume de pavor exalado pela árvore.

Baloiço… baloiço… baloiço sem parar, a cabeça do menino encontra conforto no meu peito enquanto os seus lábios procuram os meus mamilos. Do olhar semi-consciente dos gatos sente-se a ternura do momento a acalmar os espaços entre os corpos, finca-se então a boca no meu mamilo esquerdo e as gengivas nuas a comprimirem a carne entre elas. O bater do meu coração, cada vez mais rápido, de encontro à pequena cabeça, as pequenas mãos a explorarem o meu peito e face, desenhando com a ponta cega dos dedos as minhas rugas.

É assim todos os anos no primeiro dia de Outono, agora dois ou três dias passarão em que apenas me deixarei estar aqui pelo alpendre até que o menino morra da minha fome, depois largo-o no meio dos gatos para o comerem.
Mas só mesmo depois de morto, não sou uma pessoa cruel, não para os Homens e muito menos para os Gatos.