terça-feira, fevereiro 02, 2010

Outro Fevereiro

A serra que acolhia a aldeia afastava-se do dia, projectando o sol o seu brilho quase-dourado na alta parede de granito que se erguia a Este. O maciço, qual guardião, imponente e sereno, não se sensibilizou com o cenário que se formava então no centro da pequena povoação. Não se agitou com o aglomerar das gentes, nem com o erguer das três piras de madeira e tão pouco se comoveu quando as três mulheres, despidas e sangradas, foram levadas - em rigor arrastadas - sem pudor, entre os gritos de uma povoação em êxtase, até ao local da sua purificação. Assim são os penedos e este em concreto, nem mais nem menos que os restantes.

A noite ia-se revelando mais, já com Vénus presente, quando a tocha foi acesa. O senhor Matias dirigiu-se a medo à primeira pira, fecundando-a de fogo. E, crescendo-lhe a coragem e a audácia pela confirmada impunidade, repetiu o gesto para as restantes duas. As chamas irromperam então alimentadas pela fúria da carqueja pintando de fogo também as caras da, então, por momentos, silenciosa audiência.

Ás três mulheres não lhes encantou assim tanto o cenário. Nem o penedo manchado do sol nem depois as faces expectantes maculadas de fogo, todas de olhos brilhantes como astros. Não as comoveu o cheiro da carqueja, nem o seu murmúrio ardente, nem tão pouco o reconciliador aroma de fogueira. Trepavam-lhes as chamas como serpentes, gritavam só elas agora.

E mais ao longe, na manta da noite, uma alcateia observou. Despertou-a os vapores que se dispersavam pela serra com o sempre encantador cheiro de carne cozinhada. Os olhos ponderantes no foco de luz, a mente presa no salivar e no pudor do pensamento ...mas Humanos, que lhes afugentava o desejo. Libertaram-se as feras. Gritos. Palmas. Saltos. Abraços. Os estômagos, alisados pela labuta do dia e pela miséria, agitavam o mundo. E o fogo a fazer a pele soltar-se da carne, as unhas estalarem. O fogo a consumir os pêlos, demorando-se pelos seus ventres, cozinhado-lhes o sexo.

E o senhor Matias menos eufórico, algo confuso, a perguntar-se por Deus sem notar que estava sob a espada de Orion. Ele, que em novo, tinha descoberto que o amor de Deus era tão amplo que O podia amar no chão da sacristia, provando a tumescência que lhe melava mornamente os beiços, segurava agora a chama ígnea que libertaria aquelas mulheres nos reinos do Senhor. E no entanto olhava nos olhos delas e reconhecia-se na agonia, no desamparo.

A aldeia, presa no casulo de luz, a crepitar de gorduras que ferviam e seios que derretiam. Raquel de chamas hasteadas nos cabelos a olhar uma última vez para o céu nocturno. A perguntar-se se sempre teria ali estado. A pensar que de noite tudo se revela quando cai o véu ofuscante lançado pelo Sol, Porque quis Deus nos cegar?

domingo, janeiro 10, 2010

Homem de Deus.

Uso uma pequena banheira pendurada ao peito. Qual o mistério? E, nos dias em que estou prênho de aflições, torneio a minha mão em volta da fria loiça para chegar a Deus.

Não, obviamente que as torneiras não funcionam.

E não me fere o descrédito dos que me rodeiam, sei que um dia, tal como eu, vão compreender. Pois também eu era descrente. Achava todas as ideias espirituais redutoras, todas elas atalhos para a pequenez. Agora SEI porque sinto.

Chegou-me em forma de sonho-visão a revelação. Se em uma das duas teria de ser, porque não em ambas?

Fui encaminhado, em algo semelhante a um delírio, até um protoestado pré-cósmico onde me foi revelado o evento da criação. Deus, na sua higiene pessoal, banhando-se num duche de mantras em estado liquido, escorregou na banheira. E asseguro-te que a queda foi violenta, a contusão em si, avassaladora. E ainda hoje se encontra prostrado na banheira, num profundíssimo coma, como que a sonhar-nos, tetraplégico. Vejo-o ainda, tanto em sonhos como na simples imaginação, com o chuveiro infinitamente a cobri-lo de mantras - alguns deles com o tempo tornaram-se já em avé-marias - e o pobre infeliz, inconsciente, sem ninguém que o auxilie.

E é por isso que desde sempre os Homens o tentam alcançar. Esse esforço não é mais que o próprio esforço de Deus para se soerguer do coma. Infelizmente, temo que desconheça que se encontra paralisado, e que, caso um dia volte a acordar, o espera uma eternidade sem ter quem o tire da banheira. E muito menos alguém que lhe venha a empurrar a cadeira de rodas ou mudar-lhe as fraldas.

Na verdade não existe qualquer dignidade em Deus. Por isso agora creio Nele. É por isso também, que alguns dos poucos que compreendem a tetraplegia de Deus, o procuram matar. Não é tanto por piedade mas mais por considerarem que embora não seja possível qualquer dignidade Divina, nós ainda temos Direito a tal.

Mas não eu. Sou agora um Homem de Deus. Nem me questiono sobre quem, ou o quê, terá criado Deus, porque encontrei o meu caminho para a pequenez. E muito menos equaciono Ele não existir. O deserto da espiritualidade é uma planície seca onde nem os répteis me ousam visitar. Aqui não É a Morte ou a Inacção mas invariavelmente a morte pela inacção. A subliminal desidratação dos sentidos, a hipnotizadora dança dos escorpiões da auto-ilusão.

Estás a ver?! É nestes momentos assim, quando me começo a sentir perscrutado por olhos de órbitas vazias, que sobrevivo ao sentir o frio da loiça que baloiça pendular no meu pescoço... Então fecho os olhos e oiço claramente o crepitar das gotículas a embaterem sobre o Seu corpo inanimado. Sigo o som a ascender das paredes da banheira, percorro o traçado vibrante das moléculas a transferirem energia de umas para as outras até ao ponto em que toda a casa de banho cósmica se encontra repleta, saturada, de um ressoar imenso. Mas nunca me abandona o horror de saber que Deus não o escuta.

quarta-feira, outubro 07, 2009

Gatinhos para dar

A lei decreta que assim seja. E por mais absurdo que soe, a lei embora decrete é pouco mais que impávida para quem não a lê. Não deixou, no entanto, de ser absurda a imagem da mulher que entrou pelos fundos da rua, envolta num vendaval de folhas de calendário, gritando – O Mundo vai acabar!! O Mundo vai acabar!!! – sem no entanto lhe ocorrer que gritar pelo fim do mundo é como gritar pelo fim do dia, ou das estações, em suma, é gritar pela finitude das coisas finitas. E lá vinha ela ao reboliço num caos de dias e anos, cheia de esperanças e de gritos tais que lhe saltavam pedaços de carne das paredes rasgadas da garganta, clamando que fosse o mundo a mudar e não ela. E assim continuou, acordando os gatos que dormiam nos parapeitos e que, após a olharem da forma como se olha o mundo, rolaram sobre si mesmos procurando de novo o sono.


A urgência leva a tais pobrezas de espírito e a verdade é que a vida é toda ela urgência. Realiza-se assim o destino de tão pobre criatura, condenada à patologia que a irá confinar à imbecilidade. E no fundo essa é a história da História. Paranóia e obsessão, envoltas com aquilo que de mais nobre temos, criaram o monstro que se busca sempre para além dele, como se ele fosse ausente em si, apontando o dedo, gritando, condenando, enfim, gerando uma sequência milenar de mundos (i)morais que acabam já amanhã e de passados que sorriem silenciosos, trocistas da febre pelo fim das coisas. Trágico é que no meio de tudo isto seja tão desrespeitado o descanso dos felinos e, mais ainda, a nobreza dos dragões que construíram o universo do seu suor e indiferença.


E eis que, já a meio da rua, a mulher se precipita contra o solo de queixo estrondoso na dureza do asfalto. À sua volta ainda o vendaval de folhas soltas, semanas inteiras agora maculadas do seu sangue e ela atrapalhadamente a tropeçar nas palavras, a lutar consigo para se levantar. Falhando, no entanto, sempre prontamente lançada pela magnânime Gravidade de encontro à poça de sangue, e ao seu fundo, que o seu queixo aberto alimentava.

Todos os gatos então se sentaram para observar.

E a mulher já era só um emaranhado de queda, sangue, gritos e absurdo. Por uns momentos via-lhe a cara à tona, toda muco vermelho, pastosa, onde irrompiam de novo os fins do mundo – O Mundo vai acabar!! O Mundo vai acabar!!! – anjos, - anjinhos- alinhamentos planetários, calendários a voar e a gravidade a calcá-la debaixo do seu calcanhar e depois, depois o silêncio.

O Silêncio que é igual para todos, para os que guardam para si a arrogância de contemplar na sua mente a fria sabedoria do TODO e para os que se limitaram a voltar ao leito dos parapeitos.

“Pois a lei decreta que assim seja.”

sexta-feira, abril 24, 2009

A dormência sobre a qual as pedras murmuram

Quantas vezes dou por mim a viver aquele local, como se lá estivesse, visualizando vividamente os seus detalhes, levado pelos contornos da imaginação e da memória do mesmo, ouvindo-lhe a vida dos insectos que nele pulsam, as abelhas que trabalham para lhe dar os encantadores tons, num zumbido que inflama a serra, quase como se fosse essa a sua voz. E nos fins de tarde frequentemente invejo-lhe o dourado com que o sol inunda aquele vale pintando as pedras, e o gado que se retira em resguardo da noite. Onde estará a manada agora? E os cavalos tão absurdamente livres com os seus potros, que se agitam de juventude até lhes faltarem as forças sobre o calor abrasador que só os montes dissipam, quebrando-se logo ali, puxando a si a coberta de uma sombra. E nas noites de insónia, quando já os pensamentos me exaustam, quando a cama se afigura já como a minha sepultura, viajo até lá, fixo os olhos da mente naquele céu magnífico só perturbado pelo recorte cuidado e elegante dos montes que me circundam. Como me invejo por não estar ali naquele momento, como invejo a parte de mim que já lá esteve, e que acordou sobressaltada com os uivos. E tento sentir quem os uivou, onde estão, o que fazem, o que pensam agora. A morte, a morte gloriosa no seu labor de fundir a vida com as montanhas, o cavalo que se diluía por entre as ervas, já só parcos ossos e os cascos sobrando como suporte de uma liberdade então fria, alheia, mais do que esquecida. O crânio da cabra à torreira do sol, ainda putrefacto, mais do que inconsciente, e mesmo ali, nos prados, mas mais à frente, onde a montanha se inicia a precipitar rumo à medíocre vila, planam as aves de rapina elevadas nos braços das correntes ascendentes, talvez se interrogando sobre o estranho bicho que eu sou. E tudo isto, e mais, sinto-o como se fosse um pensamento inexprimível, que não pretendo alcançar com estas poucas palavras escritas, mas que me agonia em parte por não o poder partilhar com todos aqueles com que gostaria, como o meu Pai, que irá morrer sem conhecer este lugar onde habito. Este pensamento que vale mais que uma infinidade de pensamentos Humanos, fruto de um labor que se mede em milhões de mãos cheias de Tempo.

quinta-feira, abril 23, 2009

Sobre o violento silêncio dos actos não descritos

Voava ela no espaço, que julgo ser-lhes amplo, rodeada de milhares de quadrículos que forram as paredes, por entre quadrículos maiores abaixo e a branca aspereza do tecto, ou seja, na casa de banho, penso que evitando as monumentais estruturas, cálidas, reflexantes, que se erguem lá, com alguma exuberância até para mim. Tendo já evitado outra estrutura, esta castanha e alta com uma chama no extremo, quando cruzando também os ares, precipitou-se sobre o azul das águas que residem no fundo da sanita, um fio dourado -vulgo mijo- respeitando as imperiosas leis da física, precipitou-se, glorioso à escala de tão pequeno Ser, embatendo contra a loiça branca, ao que se ergueram, contradizendo por instantes a gravidade, penso que, milhares de gotículas ricocheteando, que imperceptivelmente se voltaram a juntar ao fluxo -digamos torrente para acrescentar drama-, à torrente, que discorria rumo às águas da sanita, fundindo-se com a substância, direi cerúlea, do WC Pato -Aquazul- originando aí o pequeno milagre, talvez inconcebível para a pobre mosca, onde o azul se tornaria verde. Quem sabe fruto desta transmutação, a mosca entrou pairando um tanto ausente nesse espaço reservado ao uso da pia, e do qual, por questões de segurança, deveria forçosamente evitar, e para mal da pobre, os meus olhos Verdadeiramente, para mal da pobre, os meus olhos, mecanismo de uma precisão verdadeiramente diabólica, que nesse momento, ao fitarem-na, despertaram em mim um instinto que nem tão pouco reconheço como vulgarmente meu, em que coordenando a trajectória da urina, com a rota esperada da mosca, cometi o vil acto de a assassinar ali , projectando-a contra o verde das águas contaminadas pelo WC- Pato Aquazul e a minha urina, e agora -na altura-, também então pelo espírito e o corpo desse Ser, que tão vilmente matei sem lhe perguntar pela família, nem sequer enquanto rodopiava na espiral suprema provocada pela descarga do autoclismo, que veio novamente apagar o verde e o crime, com aquele azul tão belo e profundo do WC-Pato Aquazul.

terça-feira, janeiro 27, 2009

Em paralelo

Um passo e outro, mais outro ainda, a escuridão dir-se-ia ofuscante pela forma como inunda os olhos ocultando tudo em redor. Um passo, outro passo, aqui e ali gotas que ressoam discretamente e que juntamente com os passos ecoam, quase que timidamente, no espaço. No fim de cada ruído um abismo de algo grave e vibrante, algo verdadeiramente impossível de descrever de forma clara e que se não fosse do conhecimento geral que o som não se propaga no vácuo, alguém pleno de ignorância diria que era fruto dos triliões de corpos que de uma forma ou outra se deslocam pelo universo. Surge então aquele turbilhão de pânicos, aquela insustentável consciência de que temos de fugir do vazio se queremos ser, enquanto em terror cada passo que se dá profana o ressoar. Talvez seja o corpo a funcionar que o provoque mas por mais que se busque não se escuta o coração, apenas e sempre o som grave, que nem som é em verdade, e que após cada ruído, cada passo, cada gota, surge de rompante novamente, como uma onda furiosa a rebentar que se desloca algures entre os espaços, nem dentro nem fora do corpo, mas em contacto com o mesmo.

Agora abdicara mesmo de se mover. Agora abdicara mesmo de se mover. Agora abdicara porque havia encontrado um local mais seco, sem as gotas a trautearem as suas quedas, sem profanações. Agora abdicara mesmo de se mover porque se havia entretido a procurar na tranquilidade da escuridão a natureza da sua inquietude.

E quando se escuta com cuidado, nada ouvindo, encontra-se uma noção de urgência que se escapa, algo de electrizante que parece inflamar as faces ao mesmo tempo que aparenta ocupar todo o cérebro ao ponto de o poder fazer rebentar. Há algo neste sono dos fotões que apela à desumanização, como se fosse possível sondar algo que não é mas que existe, como se todas as contradições pudessem coexistir para além do Caos e da Ordem, mesmo além dos cachos de Universos e dos caules que os unem. Um passo, outro passo, mais um passo ainda, quebra-se a multidão de silêncio, desfia-se o pensamento em pequenas cordas vibrantes que se estendem até pouco mais que o infinito.

Agora decidia mover-se. Agora decidia mover-se. Agora decidia-se porque não lhe restava escolha. Pudesse eu falar com ele e dizia-lhe o que via. Sem que se desse conta ele mesmo se desfiava a cada passo mesmo quando quieto. Atrás de si no Tempo uma linha por cada parte de si, um tecido impossível de conceber em que ele mesmo se iria diluir. Um emaranhado de tudo o que foi desagua no que é agora e mesmo olhando para trás não o veremos, não vemos o passado mesmo quando ele estrondoso nos vibra. E não adianta procurar ângulos novos, perspectivas... Acende-se por dentro um turbilhão com um vislumbre, a própria mente dobra-se sobre si mesma, como que por momentos lançando-se nesse outro sentido, algures entre os espaços, nem dentro nem fora do corpo, mas em contacto com o mesmo.

Quebrou a escuridão com o silvar do isqueiro.

Sereno seguiu pelas avenidas de sonhos de Tritão, contemplando a majestade gélida que mais que uma presença no horizonte era o Horizonte em si. E ali ficou contemplando até emergir a coragem para os próximos passos, agora bastava-lhe o que via, o irradiar gélido e luminescente pleno de glória e o fumo do pica que fumava a despenhar-se gelado sobre o solo. O fumo a estilhaçar-se, crepitando mal lhe saía das narinas e que formava, lentamente conforme se aglomerava, uma pequena torre cinza mas de ténue brilho azul. Menos que uma torre seria um pequeno monte, mas a esperança, a ambição e sobretudo a liberdade a que se dava no Tempo, permitiam-lhe aspirar a uma torre, não fosse a escuridão voltar.

sexta-feira, novembro 07, 2008

A dádiva

Ele andava perturbado, assombrado. Pesava-lhe o semblante interiormente muitas vezes ao dia. Dava por ele a cair em poços profundos aparentemente por nada, absolutamente por Nada. E quando caia via-se abstraído de onde lhe pousavam os pés, alheio, e sucessivamente ocupava-se a perguntar a esse Nada questões que o deixavam atónito, quase enfeitiçado pelo que lhe pareciam ser as paredes que o limitavam. Enlevado apaixonou-se pelas suas texturas, provava-as questionando, tocava-as com fluentes multidões de infantis porquês - Porquê? Porquê assim, e se assim porquê? Porque Nada?! Então, mas, se porque Nada porquê? - E perseguia esse Nada sem compreender o quão longe do chão ficava, conquistando espaço em cada questão viu-se a deslizar até um ponto em que tudo era apenas isso, pontos suspensos no Vazio, tão longe que não reconhecia a sua casa, o seu lugar. Sentia-se diluído no total do espaço a que chamamos Universo, parte integrante e sensível do mecânico e alheio corpo divino, mas os porquês sucediam-se, sempre a palpar os contornos do Vazio. E tal se tornou a vertigem que até em pleno sono se via mergulhado atormentado pelas suas visões. Sentia-se agora asfixiado pelo próprio Universo sensível, como se nos seus delírios Ele já não fosse por si uma fonte de perguntas, como se esse confinado espaço lhe estivesse agora disposto a deixar passar as fronteiras do firmamento, concedendo aquilo que agora lhe parece inconcebível. Uma dádiva envenenada de questões impossíveis de materializar formalmente.