Mais uma vez o Deserto. A frequência com que o Deserto aparece nos meus escritos explica-se facilmente. No sitio onde vivo só se vê Deserto, seja qual for a janela que eu escolha. E por mais horas que perca sentado na soleira da minha alma a contemplar tão despidas paisagens, não me canso. Não poucas vezes, ou todas, dependendo da profundidade com que sou lido, também é verdade que a morte, ou a Morte, marca sempre o fim do que escrevo, mas quanto a isso pouco posso fazer, a morte é vulgar, é o que de mais trivial há na vida e é sempre o fim de todas as historias. Não seria por viver no Deserto que ela se tornaria mais ou menos vulgar, por aqui também se morre como em todos os outros sítios. A diferença está, a meu ver, no tempo que decorre entre o nascimento e a morte, a vida, que aqui tem um valor maior do que em outro qualquer local no mundo.
Neste local tudo é belo, foi isso que me levou a assentar Lar por aqui, antes de se conhecer o Deserto tudo no mundo nos parece adquirido, como se os corpos, animados ou inanimados, não fossem donos de qualquer existência e apenas fossem por si mesmos, sem lutas, sem terrores. Mas da primeira vez que se estabelece o dialogo entre os nossos abismos e este mundo, compreende-se tudo de forma diferente. Hoje sei que moro distante de tudo e todos, mas sei também que os Homens que vêm até mim tiveram de passar um Deserto para me chegar e se o passaram até esta morada foi porque dentro deles existe, antes de um amor à minha pessoa, um Amor maior a tudo o que significam estes espaços, uma compreensão das Sedes que aqui reinam. E eu sei que sou infinitamente mais pequeno em tudo que o Deserto, e mesmo morando em todos os recantos dele, sei o ridículo que é quando uma voz Humana nos diz amar mais que tudo no mundo… Ora bem, uma voz destas só pode ser de uma alma toscamente talhada ou de alguém que mesmo tendo pisado as areias nunca as conheceu. E a esses, eu que me tornei também Deserto, como já escrevi, tenho somente para oferecer a ilusão, e julgo que não por culpa minha.
O que quero dizer, nesta carta dirigida aos que habitam os meus espaços vazios, é que quando se está no Deserto não se deve procurar formas de matar a sede, mas antes formas da Sede ser a nossa Morte. Porque se o matar da sede é em si mesmo um fim, o acabar de uma vontade que nos move, a Morte pela Sede é o continuar de um caminho movido pela vontade rumo ao eterno.
(Sei que não tinha de escrever nada disto, poderia limitar-me ao Deserto das palavras onde eles igualmente me conhecem. Mas antes de escrever este texto, enquanto mais uma vez olhava as minhas areias, lembrei-me que na vida as pessoas que amo são raras como os Desertos e que nunca posso possuir delas mais do que dois punhos cheios.)